A Arquitetura da Ascensão – Continuação (Cap. 1.17)
Chegou o momento de comprar a nossa casa própria com o dinheiro ganho na loteria esportiva.
Um novo tempo surgia em minha vida. Era uma melodia afinada com um canto harmônico vindo da voz materna. Agora sim! Casa nova, jardim e ela tinha roseiras vermelhas, brancas e cor-de-rosa. Uma casa grande, acolhedora onde todos nós, unidos por um sentimento fraterno estaríamos juntos num momento único. Descobrimos que a vida tinha um outro brilho.
Nossa residência ficava na área central da cidade e na avenida mais movimentada e perigosa apelidada por “Curva do S”. Tudo o que quiséssemos estava pertinho de nós.
Percebia que o meu corpo também estava mudando. Apresentava-me como uma jovem magra, curvas acentuadas, cintura fina e quadril largo. Meu corpo chamava a atenção. Cabelos compridos até a cintura e pela minha timidez e não por provocação jogava o cabelo para trás, longe de compreender que este gesto chamava mais ainda a atenção dos rapazes. Por onde eu passava, era conhecida como uma jovem séria e com jeito antipático. Foi esta a maneira encontrada de evitar contato com as pessoas. Não queria me comunicar com ninguém! Sabia andar com passos elegantes, estudados e bonitos. Aprendi a etiqueta na escola e com as boas leituras que caíam nas minhas mãos. Eu pensava que mesmo sendo de origem humilde não deveria carregar um sotaque interiorano, por isso eu fazia uma leitura com voz alta se trabalhando para evitar o sotaque. Futuramente seria esposa de um cirurgião e jamais poderia envergonhar sua família ou eu mesmo com gestos que não fossem os de uma princesa de contos de fadas.
Comprometida com o meu namorado e tanto tempo namorando, não pensávamos em desistir do nosso compromisso amoroso. Parecia que tínhamos sido feitos um para o outro. Não percebia na época que eu e ele tínhamos um relacionamento “grudento”, não nos dando tempo de respirar ou de nos dar oportunidades de conhecer outras pessoas. Ficávamos todo o tempo juntos. Dedicados um ao outro nada mais nos interessava. Ficávamos atentos aos estudos, música e família. Saíamos pouquíssimos para nos divertir. Eu já estava tão entrosada na família que além de seus pais, tios e primos, eles cuidavam de mim como se fosse da família há muito tempo e vice-versa. Apesar de toda essa intimidade nos mantínhamos firmes. O desejo sexual aumentava e o assédio começou. Mantinha-me sempre “na linha”. Não por falta de insistência da parte dele, mas, eu não desapontaria os meus pais, tinha medo de engravidar e o casamento perante Deus sempre foi sagrado. Queria muito a entrada na igreja com vestido branco honrando a minha virgindade e um véu enorme. Lembrava-me das cenas do filme da Imperatriz Sissi quando ela entrava na igreja com seu lindo vestido de casamento. Quantos sonhos! Hoje sei o quanto os nossos desejos de menina são influenciados por uma celebridade, sejam estes, positivos ou negativos.
Dei início aos estudos de parapsicologia em São Paulo. Fui obrigada a ser mais extrovertida. Meu namorado fazia faculdade e não poderia me acompanhar. Entre idas e vindas em São Paulo conhecendo a capital, tive desejo de sair do interior. Eu via toda aquela movimentação, gente que andava rapidamente, pessoas falantes e bem-arrumadas, perfumadas. Tudo com praticidade. Sentia-me outra e feliz na cidade grande. Quando voltava para a minha cidade natal, que horror! Tudo tão devagar como se as pessoas fossem movidas a câmera lenta. Uma demora incrível para que dessem respostas a soluções de problemas, muito de-va-gar! Ficava irritada, sempre fui movida a 120 km por hora.
Na capital eu via os cartazes das peças que anunciavam os concertos, peças de teatro, tudo o que eu mais amava.
A oportunidade também não me faltava em conhecer pessoas diferentes. Sentia desejo de ficar livre, desvendar outros mundos. Minha educação foi moldada aos estudos, religiosidade, artes e manter as promessas, transparência, fidelidade e compromissos assumidos quais deveriam ser cumpridos.
Como poderia chegar para os meus pais dizendo-lhes que não queria mais me casar? Na verdade, eu não me comportava como uma moça livre, sentia-me casada há muito tempo com o namoro prolongado. Quando muito jovem na época, não se dava a oportunidade de conhecer outros parceiros, um grande erro! Não foi apenas o meu caso e sim o dele e de centenas de jovens dos anos 60 e 70.
O “cerco” estava se apertando. Iria colocar a aliança na mão direita. Ficaríamos noivos durante um ano e depois o casamento aconteceria. Tudo programado. Parecia matemática: um + um = dois. Odiava aquela situação.
Vocês vão convir comigo o tédio! Eu pensava o seguinte: esta “matemática” da vida tudo certinho não combinava com a força das minhas aspirações. Era tudo tão lógico que eu dizia as minhas irmãs que durante a lua de mel eu ouviria do marido o seguinte:
— Amorzinho, abra e fecha as pernas. Vire de frente, do lado e para trás. Igual a uma coreografia. Ufa! Que marasmo!!!
Chegou o dia de fazer o enxoval do casamento. Tudo pronto e o carro na porta. Dinheiro no bolso da minha irmã mais velha que foi acompanhada pelo seu namorado, eu e o meu noivo. Fomos para o Braz em São Paulo e Rua José Paulino no Bom Retiro. O auge da moda e do mais “em conta”. Num único dia compramos todo o meu enxoval. Tudo pronto! Esperar a data do casamento e montar a casa era a próxima meta.
A nossa aliança de noivado foi comprada bem larga. O compromisso oficial tornou-se público com notas nas colunas sócias. Todos sabiam que brevemente iríamos nos casar e assim eu sorria com despeito porque as interessadas no meu noivo ficariam bem “longe” dele e os rapazes não tentariam investidas comigo. Fui muito ciumenta! Hoje percebo a sinalização de insegurança entre os dois. Será que não tínhamos medo de ser atraídos por outros? Particularmente eu pensava como seria beijar um outro rapaz, sentir o abraço do outro… mas, não conversávamos sobre este assunto, jamais! Fomos destinados para se casar e nossos pensamentos estavam voltados a nossa vida em comum.
Chegou o dia do noivado. A noite estrelada, vinho e só nós dois. Eu não quis nenhuma solenidade entre as famílias. Pusemos a aliança nos dedos com uma lista de promessas que manteríamos para sempre, unidos. Sentia vergonha de que meu pai ou minha mãe, sogros vissem aquela cena de intimidade. Acreditava que um casal quando cumprisse um pacto (como o noivado), não precisaria fazer festa contando para todo mundo. O compromisso oficial ficaria entre eles. E… se no decorrer do tempo não desse certo? Bem… os jornais publicaram nas colunas sociais o nosso noivado. Meu irmão “A”, trabalhava em jornais e a família do meu noivo tão tradicional na cidade não deixaria o ocorrido em branco. Devo registrar o fato que meus sogros ficaram desapontados pelo nosso jeito de noivar. Minha sogra adorava festa e desta vez não aconteceu o que ela previa para seu filho único. Meu sogro tocou ao violino o Hino ao Amor quando mostramos a nossa aliança já nos dedos. Ele tocava na orquestra da cidade e quis com a música fazer uma homenagem carinhosa a nós dois.
Todos membros da nossa família admiravam a joia. Tinha tanta inibição que só ao pensar que meu pai veria a aliança na minha mão direita, tinha vergonha. Será que ele pensaria que eu, com aliança na mão, atravessaria os seus ensinamentos não praticando os mandamentos religiosos de pureza? Ficava muito incomodada com os “outros” sobre este assunto. Uma jovem quando perdia a virgindade era vista como leviana. Tinha horror de ser rotulada, conservadora demais neste aspecto. Apesar de não me lembrar que a tábua de Moisés dos 10 mandamentos estivesse escrita: casar virgem!
Quando estendi o meu dedo anular para o meu pai ver a aliança, tirei tão rápido que enrosquei a aliança no batente de ferro da porta. Rasguei o meu dedo com a aliança deixando-me com cicatriz (até hoje).
Aquele incidente não foi um bom sinal, pensei. Enterrar a aliança no dedo, foi como uma cruz no meio do coração. Que opressão! Tive a coragem pela primeira vez de consultar a espiritualidade sobre o amor. A resposta veio:
— Na terra temos uma missão a cumprir. Reencontramos pessoas de vidas passadas, compromissadas a terminar uma tarefa juntos.
— Meu casamento daria certo? Perguntei novamente:
A resposta não veio. Senti um vazio na alma.
Aprendi com a própria espiritualidade que não deveria consultar sobre nenhum assunto. Eles me orientariam e pronto! Sentiria o que fazer. Intuição aguçada e a mediunidade sendo respeitada. Por isso, resolvi definitivamente ser feliz no meu casamento.
Mas… deixar o aconchego da casa dos meus pais, amor dos irmãos, mamãe minha confidente, como ficaria longe deles? Onde ficariam os meus sonhos como missionária? Viajaria como jornalista indo e vindo ao Amazonas? Amava os costumes indígenas! Quanto a música não me preocupava. Felizmente tocávamos piano, jamais ela seria abandonada.
Arrepiava-me que brevemente teria uma casa para cuidar, um marido sendo filho único e mimado pela sua mãe. O desejo era sair correndo e ao mesmo tempo ficar. Uma luta interna. O que me encantava no casamento era poder ser mãe. Adorava crianças, fascinada por elas! Meu projeto era ter dois meninos e uma menina enquanto meu futuro esposo amava os animais e sem paciência com crianças (dos outros).
A moda da mini saia estava em alta. Eu a usava muito curta, amava a liberdade de me vestir. Já não ganhava mais roupas de ninguém. Comprávamos ou íamos fazer vestidos com as costureiras. Muitas jovens faziam tricô. Nunca gostei! Mulheres elegantes usavam tamancos tão altos que não sei como ficavam em pé. Comparava estes como base de concreto na construção de um edifício.
Papai reclamava do tamanho da minha mini saia. Eu exagerava, curtas demais. Descobri um jeito para ele não brigar comigo. Na frente dele as saias ficavam em cima dos joelhos e ao descer as escadas da minha casa para a rua, dobrava a saia na cintura. Queria ter um jeitinho de ser jovem moderna e não de “crente”. Também gostava de pintar os meus olhos, contornando-os com o lápis preto, fazendo o puxado do “gatinho”. Não podia pintar olhos ou boca. Na rua e virando a esquina da minha casa, puxava o espelho de bolsa, pronto. A maquiagem estava feita. Minhas irmãs faziam o mesmo e assim não existia nenhuma discussão.
Passado um tempo. Um dia na casa da minha futura sogra, comendo um pedaço de “cuca” que tão bem ela fazia, senti um arrepio e involuntariamente, pronunciei:
— Tenho clarividência e “adivinho” o que possa acontecer com as pessoas. Sou médium. Como vou me casar com o seu filho é bom não esconder nada da senhora. Acredito que tenho que ser sincera e a nossa convivência sem segredos.
— Ah! Mas isso já sei, Bere. Respondeu –me. Sua mãe me falou disto anos atrás. Não me incomodo, não. É bom que assim você cuidará do meu filho sempre bem, sabendo o que vai lhe acontecer com antecedência.
“Jesus Cristo”, pensei!
A minha futura sogra acabava de me dizer que “eu cuidaria” do filho dela. E agora? Casamento é união entre corpos e almas ou babá do marido? Não estaríamos juntos na responsabilidade da nossa casa, trabalhar fora? Soava pesado aquele verbo cuidar na minha caixa craniana. Sentia um certo trauma, difícil tirar da mente! Viver a rotina, dividir as responsabilidades, ser cúmplices, amigos, amantes seria natural. O que ela queria dizer com o cuidar? Filhos eu teria e cuidaria, com certeza. Mas… marido? Estava entrando em pânico. Tinha a liberdade em conversar com o meu noivo sobre o assunto. Ele me deixou calma, enfatizando que eram “manias” e “coisas” da cabeça da mãe dele.
Uma tarde de muito sol fui acompanhar a minha sogra na procissão de Corpus Christi. Ruas enfeitadas, desenhadas e coloridas no chão. Aquela procissão passava em frente da casa dos meus sogros. Agradando o casal fui acompanhar os passos monótonos daquele ritual. Durante o trajeto olhei para o lado e vi o meu sogro apoiando o braço da minha sogra. Ele era um marido amoroso e como sogro muito amado por mim. Pensei naquele momento que aquele gesto era de “cuidar” de alguém. Eu, do lado da sogra e com salto alto entrando nos paralelepípedos parecia ser uma equilibrista. Com o noivo ao lado, ele fazia gozação de tudo o que via. Imaginei naquele momento qual seria o meu futuro como casada. Uma família unida com rituais comuns, domingos almoçando fora, a noite vendo noticiário, assistiria a Hebe Camargo, sábado o Golias e o Gordo (Jô Soares), Flavio Cavalcanti, Ayrton e Lolita Rodrigues, Silvio Santos, Chacrinha…. Não gostava nada daquilo. Eu queria emoção, arte, viver fora da cidade do interior, ir para a Amazônia, Rio de Janeiro. Viajar para a Índia e Egito, conhecer seus mistérios. No entanto, estava com uma aliança grossa na mão direita, equilibrista, andando numa procissão que não compreendia nada. Que vontade de sair correndo!
Minha cabeça fervilhava. Meus poemas continuavam saindo nos jornais e acabava de ganhar a página dois do jornal da cidade. Era a página mais importante de um jornal moderno. Ele trazia arte e cultura, política, coluna social, um mundo de novidades. Não deu outra. Ganhei a página dois daquele jornal. Tornei-me articulista política. Sim! Articulista política no tempo da ditadura.
Próximo capítulo dia 10/10/2018
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