A Arquitetura da Ascensão – Continuação (Cap. 1.23)
Com a partida da minha sogra ficou um vazio em nossas vidas até que nos adaptássemos sem a sua presença. Meu sogro começou a frequentar todos os dias a nossa casa. Ele almoçava e jantava conosco desde o falecimento da minha sogra. Sempre foi um prazer conviver com ele. Amoroso, gentil, educado, nunca interferiu na nossa vida. Vez ou outra quando pedíamos conselhos estava pronto a nos dar. Com a perda de sua esposa o seu neto tão pequenino fez com que os seus dias ficassem menos tristes, nascendo entre eles, um apego muito forte. Eu gostava de ver o meu sogro, marido e meu filho juntos. Uma família unida e com bons costumes como se pronunciava na época.
Estávamos entrando no mês de julho. Orgulhava-me de ver meu filho com um ano de idade correndo pela calçada. Tão pequeno começou a andar com 9 meses de idade e com as perninhas bem firmes chamava a atenção de todos. Os dias iam se passando. Notei que todas as manhas eu sentia a vista turva, dor de cabeça e enjoos. Tomava anticoncepcional, uma pílula nova lançada no mercado. Desconfiada que aquela medicação estivesse me fazendo mal, fui fazer vários tipos de exame de sangue. O resultado foi um choque! Estava grávida novamente.
Chorei muito quando soube da segunda gravidez. Não estava preparada fisicamente ou psicologicamente para ser mãe novamente. Demorei quase dois meses para aceitar a gravidez. Falta de planejamento. Afinal fui vítima sendo uma das mulheres “premiadas” com aquele lote de pílulas água com açúcar (defeito), vendido ao consumidor. Lógico que muitas mulheres brasileiras assim como o meu caso, ficaram grávidas tomando aquelas pílulas e sem direito a nenhuma indenização. Eu fui uma delas!
Aos quatro meses minha barriga começava a aparecer. Sentia rejeição pelo bebe. Não compreendia porque estava tão revoltada quando a minha vocação como mãe e professora, modéstia à parte foram e são louváveis. Como poderia rejeitar a minha gravidez?
Com a compreensão do meu esposo procuramos um psicólogo. Após algumas sessões de terapia o
profissional me mostrou o estresse que eu estava passando. Fazia um ano que eu tinha vivido o medo de perder o meu primeiro filho durante a gravidez de risco. Tinha passado por uma cirurgia (cesariana), cuidados com a sogra enferma no hospital e seu falecimento, mais noites e noites sem dormir. Estava de luto e grávida.
Na época, ainda não se usava o nome depressão. Usava-se o termo “profunda tristeza” quando acontecia a perda de alguém, luto! Eu tive a depressão após o parto e não sabia como reagir até que positivamente e mediante os cuidados daquele bom profissional fui deixando os medos, ansiedade e toda a fragilidade feminina. Captei rapidamente que meu filho pequeno, marido e sogro precisavam da minha presença saudável e não de um fardo. Não poderia ser uma “menina” mimada! Afinal, eu carregava mais um bebe no ventre.
Lembro-me muito bem que num dia corriqueiro comecei a alisar minha barriga com muito carinho. Fui me conectando ao neném, pedindo-lhe desculpas e começando a amá-lo.
Animada com a nova fase, iniciei uma pintura nova no futuro dormitório do neném preparando seu guarda-roupa, caixinhas e móbiles de músicas, véu para o berço, tudo muito lindo. Era a outra face da moeda. Na segunda gravidez eu não corria riscos podendo até brincar com o meu filho pequeno nos parquinhos e jardins.
O meu maior sonho era ter uma filha. Desejava ter uma garotinha para compartilhar as nossas coisas juntas, comprar vestidos lindos, bonecas e tudo o que eu não pude ter. A esperança renovava a minha vida e o sorriso brando e pleno eram cúmplices do meu estado de espírito.
Meu segundo filho nasceu em abril também de cesariana. Um bebe gordinho com uma pinta do lado do rosto direito, calmo! Cabeludo e olhos grandes como os da minha sogra. Não acreditava que a minha família estava crescendo tão rápido com dois bebes pequenos e ainda eu conseguia escrever, tocar, ser esposa, nora, filha, irmã, médium e sabe-se lá o que mais. Queria entender muitas coisas. Uma delas foi a dedicação dos meus estudos na área da música. Tantos anos exercitando a técnica e naquele momento da vida eu me sentava ao piano para tocar as Sonatas de Beethoven com tão pouca técnica. Estava perdendo a agilidade nos dedos de tanto trocar as fraldas de pano, colocar cueiros nas crianças e fazendo mamadeiras. Ficava claro que naquela época a mulher tinha poucas chances em se dedicar ao trabalho ou na área artística. A sociedade era rígida com as mulheres não lhes dando chances no seu crescimento profissional.
Na minha juventude ser esposa e mãe era levado muito a sério. Condutas das mais rígidas e qualquer pensamento a frente de seu tempo enfrentaria os julgamentos de uma sociedade machista.
Não me conformava com aqueles padrões. A liberdade do pensamento não podia se desabrochar. Conservadores atacavam! A guerra política em busca da liberdade de expressão era sofrível com a ditadura em cima de qualquer um dos mortais. A gente morria a cada dia enfrentando os medos. Os alienados viviam melhor dos que os da esquerda, perseguidos!
Como mulher e jovem eu tinha um desejo incontido de batalhar pela justiça social. Não me conformava com os pobres abandonados, miséria e ignorância. Sentia vibrar no meu corpo e na alma o desejo de mudar o mundo. Lembrava-me dos protestos e luta de Gandhi, clamor de uma Joana d’Arc e um desejo ardente de dar um salto no escuro sem medo de cair. Como viveria com tanta sede de fazer algo para o mundo vivendo numa cidadezinha conservadora? Escrevendo politicamente para os jornais, defendendo os oprimidos e clamando pela democracia eu corria riscos. Adepta a teologia da libertação só podia ter uma alma inquieta! Vivia revoltada. Queria ser EU. Aquela Berenice que um dia foi uma menina tímida, pobre financeiramente e que tinha premonições, incompreendida, obediente, amorosa, justa, disciplinada, estudiosa, carregando o desejo de viver algo muito maior do que estava sendo projetado na minha vida estava morrendo! Quem vivia o oculto sabia que a cortina estava na frente dos olhos e da mente podendo causar danos para sua própria alma. Era um viver muito louco de SER.
Como quebraria as tradições? Jamais eu poderia pensar diferente daquelas mulheres casadas que ficavam tricotando nas calçadas, ouvindo novelas, lendo fotonovelas e rezando. Um suicídio social!
Como explanaria as minhas ideias com os professores conservadores? Como que dizer ao marido que eu estava infeliz com os papéis repetitivos de ser esposa e mãe? A máquina de escrever artigos aos leitores de um jornal teria que ser sempre de um jeito sutil. A ditadura não poderia ser escrita ou falada como se fosse uma violência física, mental e espiritual. Ou… morreria como uma terrorista!
Deveríamos sempre ser comedidas nas reuniões de mães. Jamais mencionar que os filhos faziam parte de nossas células, mas as mulheres também tinham a sua própria vida e os homens pudessem ser ajudantes do lar. Divisão de tarefas. Mas… rasgar o verbo seria excluída de grupos sociais com marginalização moral.
Desejava falar bem alto para aquelas beatas que eu não acreditava em confissões feitas aos padres nos confessionários. Mencionar a repulsa por pastores que cobravam dízimos elevadíssimos como aquele “profeta preço de dólar” para se salvar dos “nossos” pecados.
Com revoltas eu vivia o cotidiano e não reclamava! Pensava e não agia. Que tédio!!!
Numa noite de verão agendei na minha residência um grupo de pessoas adeptos da Yoga. Reunimos para meditar e praticar Yoga. Infelizmente durou pouco! Meu esposo não gostou da ideia de ter pessoas em casa fazendo meditação. Casamento era uma sociedade horrorosa que beneficiava o homem, pensava comigo. Eles eram considerados o “chefe” da casa, ditavam as ordens, mulheres respeitavam e o assunto estava por encerrado. Situações parecidas como se estivéssemos num tribunal. O juiz bateria o martelo e o silêncio reinaria!
Não estava gostando nada daquele modo de vida. Estava evidente que com a chegada do meu segundo filho eu não tinha mais vida social ou cultural com meu esposo. Dirigia o meu carro saindo para reuniões sempre sozinha. Encontros com os escritores, concertos de piano e vernissage eu marcava a presença profissionalmente. Fazia o meu papel como artista e jornalista comparecendo aos eventos culturais com imenso prazer. Vivia sem o meu “marido”. Minhas irmãs ou mãe se prontificavam a ficar com as crianças algumas vezes para que pudéssemos sair juntos como casal. Ele não cedia. Meu marido amava a televisão assistindo os programas humorísticos da época e até o Chacrinha! Sentia-me uma viúva, desquitada, divorciada…
Continuei o meu trabalho com destaque no mundo das artes. Com dois irmãos artistas plásticos, um tio famoso na área e incentivada no meio artístico e jornalístico como poderia deixar de ser a Berenice? Não demorou para eu cair na realidade. Compreendi que eu me tornara uma mãe muito jovem e cedo demais. Com 23 anos já tinha dois filhos. Carregava experiências psicológicas como de uma mulher mais velha. Decisão tomada num insight. Lutaria para não me tornar uma pacata “dona de casa” já que o meu esposo estava intencionado a me trancar numa redoma de vidro. Comecei a questionar primeiramente pelo meu nome tão diferente na época. Muito inquieta eu deveria sofrer de alguma síndrome de inquietude. Algo existia de diferente em mim não se ajustando nos padrões dos anos 70.
Num bate papo informal fui para as pesquisas. Comecei com os meus pais perguntando-lhes como escolheram o meu nome. Naquela época não existia Google para saber o seu significado. Meu pai todo feliz disse-me que o meu nome foi escolhido por ele por ser bíblico do livro de Atos. Minha mãe bem mais “para a frente” assistia uma novela onde a forte personagem se chamava Berenice. Confirmou que foi ela quem escolheu o meu nome. Bem… se tinham escolhido o meu nome vindo da Bíblia e do meio artístico a junção estava ótima, pensei! Precisava dar um jeito de realizar algo primoroso já que “eu” (o nome), tinha uma importância positiva. Se todos carregávamos a célula e a magnífica presença de Deus dentro de cada um de nós, deveríamos materializar os nossos desejos. Deveria ser esperta. Ficaria silenciosa e projetaria a minha vida como se estivesse mapeando os dons herdados da família. Por que iria brigar comigo e com todos? Não adiantaria nada. Será que eu estaria sendo injusta comigo e com o marido projetando algo melhor para todos nós?
A realidade era um fato. Amar uma ação e sentimento. Casamento uma coisa. Ser mãe outro estágio de SER. Coisa com coisa se complicava e ri muito no dia que descobri que vivíamos balançando de um lado para outro. Arranquei a cortina dos olhos, percebendo ser uma idiota fazendo o que todos induzissem sem ter o preparo necessário para atuar do palco da vida. Os aplausos sempre vieram para quem gostava de ser robotizada.
Decretei que não ficaria num palco sem um script. Quem desejava ser uma artista deveria também ser um bom empreendedor.
Próximo capítulo dia 31/10/2018
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